A história por trás da Historia das Divinas Divas! por Marcia Tirésias

A história por trás da história das Divinas Divas

Fig 1 – Divinas Divas (Foto: divulgação)

Na última quinta-feira, dia 22/06, estreou no Brasil o filme Divinas Divas, de Leandra Leal. É um documentário que fala de oito artistas travestis que faziam shows no Teatro Rival do Rio de Janeiro (pertencente à família de Leandra) nos anos 60 e 70. Rogéria, Jane Di Castro, Marquesa, Eloína dos Leopardos, Divina Valéria, Camille K, Fujika de Halliday e Brigitte de Búzios, já idosas, são as estrelas.

Para entender a origem do filme, vale a pena recuar para a década passada. Em 2004, para celebrar 70 anos da fundação do teatro, foi organizado um espetáculo chamado Divinas Divas, com todas as travestis mencionadas acima. A escolha do tema não foi por acaso: era uma homenagem àquelas artistas que sustentaram o funcionamento do Teatro Rival em alguns de seus piores anos, no auge da ditadura militar.

O espetáculo comemorativo fez enorme sucesso e durou dez anos. Em 2014 foi realizado o derradeiro show, com um número musical diferente e inovador. Aproveitando o momento, a diretora Leandra Leal, já proprietária da casa, decidiu rodar um documentário focando na preparação do último espetáculo e também na vida e carreira de cada uma das travestis. Nascia então, ali, o filme Divinas Divas.

O resultado é um trabalho comovente. As artistas contam sobre suas vidas, relembrando os momentos de glória da carreira, a difícil convivência com os familiares, seus amores e a repressão da ditadura. O processo de envelhecimento delas, retratado no filme, evoca no público a dor da passagem do tempo. Por outro lado, passa também uma mensagem de esperança: afinal, é possível sobreviver e envelhecer com dignidade, mesmo sendo homossexual, travesti, mesmo sendo diferente.

A própria diretora, a Leandra Leal, converte-se em personagem e recorda com carinho de momentos da sua infância, quando perambulava pelos bastidores do teatro e se maravilhava com a performance das travestis. De fato, o afeto da diretora pelas personagens transborda em todo o filme.

Além disso, o documentário exibe trechos dos shows, evidenciando o valor artísticos das apresentações. O termo Divas não é condescendente. É de impressionar ver senhoras de mais de 70 anos exibirem belas vozes belas, controle corporal e presença de palco.

Se há algo que faltou no filme, é uma explicação mais clara da época em que as travestis “salvaram” o Teatro Rival do fechamento. Por que aquele período foi tão complicado? Qual a diferença com os dias de hoje?

 

A Ditadura Militar e o Fim do Teatro de Revista

No final dos anos 60, devido à marcação cerrada da censura governamental, o irônico e contestador Teatro de Revista estava praticamente extinto. Não se podia mais fazer piadas com os governantes. A concorrência com o cinema e a nascente televisão corroeram a presença do público e a ditadura foi a pá de cal. A única opção de sobrevivência para o Rival foram os shows de travestis, sempre bons de público e sem críticas políticas, o que não criava problemas com a censura. Foi graças a eles que o teatro conseguiu atravessar todo o período da ditadura e seguir funcionando até hoje.

De fato, não apenas o Teatro Rival, mas vários outros mantiveram os espetáculos vivos graças às travestis. As vedetes desapareceram e deram lugar a estes personagens. Mesmo após o fim do Teatro de Revista, os shows do tipo burlesco se perpetuaram pelas apresentações de travestis durante todas as décadas de 60, 70, 80 e 90.

 

Como eram tratadas as travestis na época

No filme Divinas Divas , Jane Di Castro, Divina Valéria e Eloína comentam sobre prisões e abordagens feitas por policiais. Jane comenta que chegou a ser espancada. Se elas faziam tamanho sucesso no teatro, por que eram presas na rua?

Fig 2 – Prisão de travesti (Foto: Juca Martins)

A resposta é que o Estado era relativamente tolerante com essas pessoas, desde que não saíssem de seu gueto. Segundo a legislação da época, vestir-se com roupas do sexo oposto era considerado por si só um crime e andar dessa forma nas ruas poderia ser enquadrado como crime de “vadiagem”.

Se hoje uma travesti pode tranquilamente tomar café com suas amigas e comprar bijuterias no shopping center, naquela época ir a pé ao mercado poderia render uma prisão. Divina Valéria, por exemplo, conta no filme que sabia da proibição, mas não havia o que fazer. Afinal, ela não tinha como se vestir de outra maneira, pois era uma mulher. E foi presa repetidas vezes. Como de praxe, homofobia caminhava de mãos dadas com atração sexual reprimida: Divina Valéria também conta no filme que algumas vezes tinha que passar horas respondendo a perguntas dos policiais sobre detalhes de sua vida íntima, seu sexo biológico e sexualidade.

O governo, muitas vezes com a aprovação silenciosa da classe média conservadora, chegava a elaborar planos complexos custeados com dinheiro público, com o único objetivo de eliminar travestis de bairros residenciais. Em 1980, por exemplo, o jornal Estado de São Paulo divulgou um “plano estratégico” da polícia que compreendia a retirada completa das travestis das ruas, o reforço do efetivo da Delegacia de Vadiagem do DEIC e até mesmo a construção de um prédio-prisão. Além disso, haveria a definição de “áreas específicas” da cidade para colocar todas as travestis juntas. Algo muito parecido com o que está sendo feito com a Cracolândia hoje em dia.

 

Os Manicômios

Em uma das passagens mais tristes do filme, a travesti Marquesa conta que, na manhã seguinte a um espetáculo de enorme repercussão, sua mãe decidiu interna-la em um manicômio.

Fig 3 – Parte externa do Manicômio de Juquery. (Foto: Último Segundo)

A prática não era incomum. Em uma época de intenso conservadorismo e falta de informação garantida pela censura, homossexuais e travestis eram considerados loucos por seus familiares. Nos Estados Unidos, a homossexualidade deixou de ser considerada doença no início da década de 70, mas a novidade demorou a chegar no Brasil. Muitas famílias, desesperadas pela “doença” dos filhos ou ansiosas por se livrar de alguém que lhes causava vergonha ante a sociedade, internavam os jovens homossexuais nestas instituições. Os Manicômios de Juquery e Barbacena eram os destinos mais frequentes.

 

Ditadura à brasileira não é para se levar muito a sério

Mas, considerando a moralidade ambígua da ditadura à brasileira, não dá para se levar tudo muito a sério. No cenário complexo de uma cultura onde ter um patrimônio ou ter um padrinho pode fazer muita diferença, uma “virtude” podia cancelar um “vício”.

Por exemplo, se alguém possuía o “vício” da homossexualidade ou travestismo, isso poderia ser compensado com a “virtude” da riqueza ou de ter amigos influentes. Como Fernando Gabeira conta no livro “O Que É Isso, Companheiro?”, a ditadura perseguiu os homossexuais POBRES.

Isso ajudar a explicar porque Rogéria desfrutou de tanta tranquilidade em um período tão complicado. Ela tinha amigos e contatos influentes no meio artístico e especialmente na TV, como Agildo Ribeiro. Isso lhe permitia participar de especiais musicais, programas de auditório, dar e fazer entrevistas, tão logo a censura começou a relaxar, no final dos anos 70. Ela sempre tomava o cuidado de ser apolítica, como forma de evitar problemas com os militares. E sua irreverência a tornava uma figura cativante para o público.

Fig 4 – Rogéria (Foto: divulgação)

Se o governo prendia travestis nas ruas, também permitia com certa tranquilidade uma travesti debochada na TV Globo. Se a classe média conservadora aplaudia a polícia que eliminava as travestis de seus bairros, também se deliciava em ver a Rogéria cantando e dançando na sala de jantar.

Como a própria Rogéria diz no filme: “eu sou a travesti da família brasileira”.

Fonte: ”Onde Estavam as Travestis Durante a Ditadura?”, de Elaine Vieira, Revista Forum. Link: http://www.revistaforum.com.br/osentendidos/2015/04/05/onde-estavam-travestis-durante-ditadura/

Beijos
Márcia Tirésias